Um estudo publicado no Journal of Archaeological Science detalha a dieta de cães de trenó que viveram há cerca de 9 000 anos no Ártico siberiano. A investigação examinou 34 amostras de fezes congeladas retiradas do sítio arqueológico de Zhokhov, no arquipélago das Ilhas Novas da Sibéria, e identificou vestígios de peixe, carne de rena e, de forma surpreendente, pelos de urso-polar.
Contexto do sítio de Zhokhov
Zhokhov era parte do continente eurasiático até uma alteração do nível do mar separar o local, há cerca de 8 500 anos. Antes desse isolamento, grupos paleolíticos ocupavam a área, utilizando cães para puxar trenós e auxiliar na caça. Ossadas encontradas ali indicam que ursos-polares eram abatidos principalmente durante o inverno, quando presas menos perigosas se tornavam escassas.
A análise das fezes permitiu reconstruir hábitos alimentares dos animais de trabalho. Os cientistas detectaram grande incidência de vermes parasitas, como os tênias do gênero Dibothriocephalus, adquiridos pelo consumo de peixe cru, e ovos de Taeniidae, associados à ingestão de carne de rena.
Resultados da análise
Mais de 90 % das amostras apresentaram parasitas ligados a peixe, indicando que a pesca era uma fonte constante de alimento fornecida aos cães. Em cerca de um terço das amostras, surgiram parasitas típicos de renas, reforçando a importância desse animal na dieta local. O achado mais notável, porém, foi a presença de pelos de urso-polar nos excrementos, evidência de que a carne do predador também era oferecida aos cães.
Marcas de mordida de cães em ossos de urso-polar encontrados no sítio corroboram a conclusão de que os animais passaram a se alimentar desse recurso disponibilizado pelos caçadores humanos. Segundo os autores, a abundância de ursos-polares na região tornava essa espécie um componente vital da alimentação durante o inverno.
Impacto na saúde e no desempenho
O elevado índice de infestações parasitárias identificado nas fezes sugere que os cães poderiam sofrer perda de resistência e queda no desempenho, comprometendo tarefas de transporte e caça. Relatos de exploradores posteriores, como Knud Rasmussen e Alexander von Middendorff, apontam que carne de rena oferece baixo valor energético para cães de trabalho, enquanto carne de mamíferos marinhos, rica em gordura, costuma garantir maior vigor.
O estudo alerta que a ingestão de grandes quantidades de carne de rena e vísceras pode ter causado doenças e fraqueza nos animais. Já o consumo de urso-polar, embora energeticamente mais denso, exigia que a carne estivesse congelada para evitar problemas de saúde, prática que não pôde ser confirmada para o período analisado.

Imagem: Anna Korovina
Metodologia da pesquisa
As fezes foram coletadas em escavações realizadas entre 2002 e 2003, mantidas em estado congelado e submetidas a análises microscópicas e genéticas. A identificação de pelos utilizou comparações morfológicas com amostras de referência, enquanto a detecção de parasitas envolveu técnicas de flotação e microscopia de luz. A datação das amostras baseou-se em estratigrafia e carbono-14.
Os resultados reforçam a importância dos cães na adaptação humana ao Ártico, ao mesmo tempo em que evidenciam desafios de saúde enfrentados pelos animais em ambientes extremos.
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O estudo mostra como a análise de vestígios aparentemente simples, como fezes preservadas, pode revelar detalhes valiosos sobre práticas de subsistência de grupos humanos antigos e seus animais de apoio. Continue seguindo nossas publicações para mais novidades do mundo da pesquisa arqueológica e científica.
Curiosidade
Pesquisas recentes indicam que a domesticação dos cães para tração de trenós pode ter ocorrido há mais de 9 000 anos, anterior ao que se estimava. A presença de parasitas específicos sugere também rotas de transmissão entre humanos e animais. A descoberta em Zhokhov é uma das raras evidências diretas de interação entre cães e ursos-polares. Estudos futuros pretendem analisar o DNA das fezes para identificar possíveis linhagens caninas extintas. Esses achados contribuem para compreender a coevolução entre humanos, cães e o ambiente polar.